Sonhar a propriedade rural.
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Quando eu entrei na faculdade de veterinária no segundo semestre de 1980… aliás, para ser mais exata, quando eu pensei em fazer veterinária no primeiro semestre de 1980, eu tinha uma ideia do que seria uma propriedade rural.
E depois, quando entrei na minha segunda faculdade de veterinária em 1981[1], fui mudando minha visão até que comecei a imaginar a propriedade rural como um organismo[2] auto-suficiente.
Que fizesse isso de modo planejado ou intuído, de forma que os constituintes e componentes da propriedade e seus processos fossem aproveitados e tratados da forma mais articulada possível: a parte dos animais, a parte de plantas, a parte dos solos, a parte da água, a parte dos moradores, a parte de… e que tudo se articulasse como um organismo único.
Quando eu estava no final de meu terceiro ano na faculdade, em 1983, me dei conta que só ficou “a parte de”.
Tudo era tratado como “partes de”, sem qualquer planejamento que visasse qualquer nível de integração que superasse o básico do básico.
Aquela “história” de que “o todo é mais que suas partes” não passava nem perto do que era ensinado[3].
Um problema do gado era só um problema do gado.
Mas não pode ser um problema da água que passa por …
De maneira alguma.
E o manejo? Ele está de acordo com… prevendo que …
Também de maneira alguma.
Mas o stress das vacas não pode…
Que isso, garota? Isso é …, pare de caraminholas…
Depois de um tempo desisti.
Achei que a visão que eu tinha de propriedade rural era uma fantasia, e das grandes, e passei para a área de pequenos animais (animais de companhia).
Depois de vários anos de formada, e outros tantos de estudo de Homeopatia (e por causa desta mesma Homeopatia), comecei a tomar ciência da agropecuária orgânica.
E vi com um certo espanto que não era só eu que tinha aquelas idéias “malucas” acerca da integração de propriedades rurais e sobre a tal da visão de uma propriedade rural como um “organismo vivo”.
Isso me trouxe de volta lembranças de uma visão “ingênua” das atividades agropecuárias que me alegraram.
Na minha região de origem, no interior do estado de São Paulo, usávamos um termo para designar certas pessoas: “lonfo”, que seria aquele indivíduo que possuiria uma ingenuidade quase patológica, do tipo que compraria a avenida Paulista se lhe fosse oferecido. Por muito tempo eu me senti “uma lonfa” com relação a meus pensamentos sobre propriedades rurais.
Agora não aceito mais ouvir que o ideal de propriedade rural que todas correntes da #agroecologia apregoam seja “lonfices”.
Este ideal de integração de “peças” e processos remonta a uma integração com a terra e a Terra que, nunca é demais salientar, é imprescindível para qualquer noção decente de sustentabilidade e que se deveria fazer acontecer o mais rápido que o tempo da apreensão e adaptação humana permita. Nós precisamos disso.
Principalmente por que nós comemos mal, vivemos mal. Somos mal educados em comportamentos em geral, e no trato da terra/Terra e uns com os outros em particular.
E o pior de tudo: não conseguimos perceber que o agronegócio, as grandes propriedades com monocultura, plantações de commodities e cia podem até trazer divisas para nosso país, mas que são as pequenas propriedades familiares, as cooperativas, os assentamentos produtivos que trazem alimentos à mesa de todos nós.
E aí entra a #Agroecologia.
E entram também as cooperativas de agroecologia e as propriedades que utilizam a agroecologia para fazer parte disso.
Commodities[4] versus produção (real) de alimentos.
E isso precisa ser conversado.
É fato que o setor ruralista é importante pela contribuição de suas exportações ao PIB [5].
Mas também é fato que quem põe comida em nossa mesa é uma agricultura que não é a da exportação.
Quantos a conhecem? Quantos a valorizam? Quantos pensam sobre ela, mesmo aqueles que falam de sustentabilidade em seu dia a dia?
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[1] Entrei no segundo semestre de 1980 na Faculdade de Veterinária de Alfenas e no primeiro semestre de 1981 na UNESP Jaboticabal.
[2] No primeiro semestre de 1980 eu também pensei em fazer Biologia, mas desisti quando uma colega de cursinho me falou que, se eu fizesse Biologia, ou iria dar aula em colegial – o atual ensino médio – ou teria que sair do país para fazer pesquisa. E eu não queria dar aula no então segundo grau ou sair do país. De há muito me considero uma bióloga que fez veterinária. Ou alguém que tem um viés na clínica (ter visão patológica) e para Biologia (ter uma visão de ser vivo para quase tudo), por isso o “organismo” usado aqui numa visão de Biologia.
[3] E visão sistêmica (de sistemas), e visão de sistemas complexos, a complexidade, e redes e fluxos, e…
[4] Que também passam pela questão de commodities e Commons, mas esta é outra história…
[5] Produto Interno Bruto.
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Originalmente publicado em apontamentosagroecologicos.wordpress.com/sobreagroecologia/sonhar/
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